quinta-feira, 8 de maio de 2014

OS BEBÊS DAS OUTRAS

Por Dr. phil. Sônia T. Felipe 
No sistema de criação de animais para consumo humano, a lista de crueldades praticadas contra os bebês animais não tem fim. Falo de bebês, fazendo a comparação entre o tempo natural da vida em cada espécie e o tempo que os humanos mantêm os animais confinados até abatê-los. Todos os animais consumidos na dieta humana, com exceção dos bovinos que são mortos no final da infância, são manejados e mortos em sua fase de bebê.
Mesmo os ativistas que estão diariamente envolvidos com a questão da defesa dos direitos animais acabam não percebendo que a dieta animalizada está assentada sobre a crueldade e tortura de bebês de outras espécies, seguindo o processo que já torturou e atormentou ou matou as mães desses bebês.
As mães humanas, cujo dia será comemorado no próximo domingo, não têm ideia da agonia de outras mães e do destino atroz ao qual os bebês delas são condenados para que os pratos dos bebês e crescidinhos humanos sejam enchidos com a matéria dessas carnes, leites e ovos.
De bebês bovinos e ovinos os chifres são extraídos sem anestesia. Os testículos de bebês ovinos, caprinos e suínos são extraídos sem anestesia. Mas toda gente que come carnes desses bebês sente arrepio ao pensar em seu cãozinho de estimação sendo castrado sem anestesia, ou sendo comido por povos que não os usam para estima e companhia.
O bico de galinhas bebês, destinadas à produção e extração de ovos, é queimado em lâmina de fogo, sem anestesia. A dor permanece ali por umas seis semanas. O bico das aves é um órgão que congrega as funções do olho, do tato e do olfato, sem as quais não haveria seleção de alimentos na vida natural.
Terminações nervosas se concentram na área do bico. Mas a ferida da lâmina de fogo não recebe nenhum tratamento analgésico. E é com a boca em chaga viva que esse bebê galinha terá que pegar o alimento que lhe será dado nas próximas semanas. Sem analgesia. Sem assepsia. No bruto mesmo. Dor infinita. A gente pode imaginar uma chapa em brasa cortando fora nossos lábios, sem anestesia pré-corte e analgesia pós-corte.
A cauda de ovinos bebês, usados para extração da lã, transporte de cargas, e mortos para extração de tudo que é matéria de seu corpo, das carnes às tripas, é cortada sem anestesia; e dos porcos bebês também, pois nos 140 dias do confinamento pré-morte eles comem a cauda uns dos outros, porque sua mente curiosa e inteligente não aguenta o terror e tormento da monotonia da vida aprisionada.
Na indústria de ovos, para a qual não interessa criar e sustentar machos, os bebês galináceos são triturados vivos ou sufocados em sacos com centenas deles, sem sedação prévia.
Os bebês recém-nascidos nos planteis de extração de leite de vaca são levados de caminhão, menos de 24 horas após terem saído do útero, para um cubículo escuro onde serão maltratados por quatro meses até que seu peso renda o custo disso e sua carne esteja tão branca e macia que mais pareça um queijo Camembert. Essa é a carne anêmica de vitela. Os que não têm tal destino são triturados pela indústria de alimentos para animais adquiridos ou adotados para estima, companhia ou guarda.
Os chifres são arrancados dos rinocerontes para fazer poções mágicas que, pretensamente, devolvem a virilidade a membros murchos, quando a causa da incapacidade masculina geralmente está na dieta animalizada que forma placas de gordura que entopem as artérias do sujeito.
As presas são arrancadas dos elefantes ainda vivos, pelos caçadores, que as vendem no mercado internacional do marfim. E os bebês dessas fêmeas, as educadoras naturais deles, ficam órfãos e piram completamente sem a presença de suas mães, tias e avós. Sim, uma manada de elefantes é constituída pelos bebês delas e pelas fêmeas mais velhas, que os criam e educam coletivamente. Os adolescentes machos se retiram da manada quando finaliza o processo educativo. Mas, se o processo não é finalizado, suas mentes ficam à deriva e eles podem se tornar destruidores da vida de outros animais, algo que não existe numa mente saudável de elefante. Arrancar as presas de uma mãe, avó ou tia é destruir o espírito dos bebês e jovens elefantes que não têm com quem aprender o que sua natureza ou éthos lhes destina a ser.
As aves são engordadas ainda bebês, com comida em excesso, em tempo recorde: chega a menos de 30 dias de vida, nos quais o corpo adquire o peso e volume de um adulto. Imagine um bebê humano de menos de um ano com uma massa corporal de 60 kg, resultado do manejo alimentar, probióticos e antibióticos. Esse é o frango, o peru do Natal, o chester etc.
Na coleta e transporte desses bebês, levados para a morte, o peso do corpo fratura seus ossos, e é assim que pelo menos um em cada três desses bebês deformados acaba pendurado no gancho do abatedouro, com os ossos já fraturados, de cabeça para baixo, quando levado para a lâmina de água eletrificada na qual sua cabeça é passada para que desacorde um segundo antes da lâmina de metal o degolar. Como você prefere o frango? Assim mesmo.
Com a idade equivalente a de um bebê humano de dois anos, nesse caso, 90 dias de vida, os gansos e patos são colocados nas gaiolas para dar início à ingestão forçada de calorias que levará seus fígados a inchar 10 vezes o tamanho natural e a chegar ao peso de 65% do total do corpo em 28 dias de empanturramento. Em seguida, são mortos para extração do órgão gordo e degenerado. Ele vira patê. Consumido ao redor do mundo como iguaria francesa.
A pasta do fígado de bebês gansos, deformado pela ingestão forçada de alimentos altamente caloréticos: milho e gordura de porco ou mesmo de outros gansos, como você prefere? Assim mesmo. Não tem alternativa ética para fugir desse patê de foie gras.
Eu poderia passar o resto do dia a citar as atrocidades da indústria de carnes, leite e ovos, contra os bebês de fêmeas de outras espécies. Mas não acusarei a indústria. Os que a acusam sucumbem à falsidade de propostas bem-estaristas. Não há bem-estar possível para nenhum desses bebês. Não há bem-estar possível para nenhuma de suas mães. A indústria cruel só existe porque há consumo frio, seco e indiferente ao tormento dos animais.
O mesmo acontece com a morte dos elefantes, cujas presas são arrancadas deles ainda vivos para serem esculpidas em joias, tronos, teclas de piano e estátuas consumidas ao redor do mundo. Se não houvesse consumo, não haveria essas mortes.
É preciso abolir o consumo. Dieta abolicionista. Fim de toda crueldade humana contra os animais. E para abolir o consumo, os bebês das outras fêmeas esperam que as fêmeas humanas se deem conta da crueldade presente nas matérias alimentares que elas ingerem e forçam seus próprios bebês a ingerirem.
Dieta abolicionista vegana integral. A libertação ética animal, sem especismo eletivo ou elitista. Paz no prato. Paz na mente. É no eixo mãe-bebê que cada uma de nós veio ao mundo e se fez mulher, ou se faz homem, como ocorre com os elefantes. Quem se esquece de sua igualdade com outras fêmeas e com outros bebês, esquece-se de sua condição animal humana.
Se, quando bebês, houvessem feito a nós o que fazemos aos bebês das outras, como julgaríamos isso, estando do outro lado das lâminas de fogo, cortantes? É assim que você quer ser servido?

perfil soniaSônia T. Felipe | felipe@cfh.ufsc.br
Sônia T. Felipe, doutora em Teoria Política e Filosofia Moral pela Universidade de Konstanz, Alemanha (1991), fundadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Violência (UFSC, 1993); voluntária do Centro de Direitos Humanos da Grande Florianópolis (1998-2001); pós-doutorado em Bioética - Ética Animal - Univ. de Lisboa (2001-2002). Autora dos livros, Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais(Boiteux, 2003); Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas (Edufsc, 2006);Galactolatria: mau deleite (Ecoânima, 2012); Passaporte para o Mundo dos Leites Veganos (Ecoânima, 2012); Colaboradora nas coletâneas, Direito à reprodução e à sexualidade: uma questão de ética e justiça (Lumen & Juris, 2010); Visão abolicionista: Ética e Direitos Animais (ANDA, 2010); A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos (Fórum, 2008); Instrumento animal (Canal 6, 2008); O utilitarismo em foco (Edufsc, 2008); Éticas e políticas ambientais (Lisboa, 2004); Tendências da ética contemporânea (Vozes, 2000).
Cofundadora da Sociedade Vegana (no Brasil); colunista da ANDA (Questão de Ética) www.anda.jor.br; publica no Olhar Animal (www.pensataanimal.net); Editou os volumes temáticos da RevistaETHIC@,www.cfh.ufsc.br/ethic@ (Special Issues) dedicados à ética animal, à ética ambiental, às éticas biocêntricas e à comunidade moral. Coordena o projeto: Ecoanimalismo feminista, contribuições para a superação da discriminação e violência (UFSC, 2008-2014). Foi professora, pesquisadora e orientadora do Programa Interdisciplinar de Doutorado em Ciências Humanas e do Curso de Pós-graduação em Filosofia (UFSC, 1979-2008). É terapeuta Ayurvédica, direcionando seus estudos para a dieta vegana.