domingo, 27 de outubro de 2013

Crônica de Machado de Assis publicada na coluna "A Semana" do jornal "Gazeta de Notícias"

http://www.cronicas.uerj.br/home/cronicas/machado/rio_de_janeiro/ano1893/05mar1893.html


05 de março de 1893

Quando os jornais anunciaram para o dia 10 deste mês uma parede (greve) de açougueiros, a sensação que tive foi mui diversa da de todos os meus concidadãos. Vós ficastes aterrados; eu agradeci o acontecimento ao céu. Boa ocasião para converter esta cidade ao vegetarismo.

Não sei se sabem que eu era carnívoro por educação e vegetariano por princípio. Criaram-me a carne, mais carne, ainda carne, sempre carne. Quando cheguei ao uso da razão e organizei o meu código de princípios, incluí nele o vegetarismo; mas era tarde para a execução. Fiquei carnívoro. Era a sorte humana; foi a minha. Certo, a arte disfarça a hediondez da matéria. O cozinheiro corrige o talho. Pelo que respeita ao boi, a ausência do vulto inteiro faz esquecer que a gente come um pedaço de animal. Não importa, o homem é carnívoro.

Deus, ao contrário, é vegetariano. Para mim, a questão do paraíso terrestre explica-se clara e singelamente pelo vegetarismo. Deus criou o homem para os vegetais, e os vegetais para o homem; fez o paraíso cheio de amores e frutos, e pôs o homem nele. Comei de tudo, disse-lhe, menos do fruto desta árvore. Ora, essa chamada árvore era simplesmente carne, um pedaço de boi, talvez um boi inteiro. Se eu soubesse hebraico, explicaria isto muito melhor.

Vede o nobre cavalo! O paciente burro! O incomparável jumento! Vede o próprio boi! Contentam-se todos com a erva e o milho. A carne, tão saborosa à onça, — e ao gato, seu parente pobre, — não diz cousa nenhuma aos animais amigos do homem, salvo o cão, exceção misteriosa, que não chego a entender. Talvez, por mais amigo que todos, come-se o resto do primeiro almoço de Adão, de onde lhe veio igual castigo.

Enfim, chegou o dia 10 de março; quase todos os açougues amanheceram sem carne. Chamei a família; com um discurso mostrei-lhe que a superioridade do vegetal sobre o animal era tão grande, que devíamos aproveitar a ocasião e adotar o são e fecundo princípio vegetariano. Nada de ovos, nem leite, que fediam a carne. Ervas, ervas santas, puras, em que não há sangue, todas as variedades das plantas, que não berram nem esperneiam, quando lhes tiram a vida. Convenci a todos; não tivemos almoço nem jantar, mas dous banquetes. Nos outros dias a mesma cousa.

Não desmaies, retalhistas, nesta forte empresa. Dizia um grande filósofo que era preciso recomeçar o entendimento humano. Eu creio que o estômago também, porque não há bom raciocínio sem boa digestão, e não há boa digestão com a maldição da carne. Morre-se de porco. Quem já morreu de alface? Retalhistas, meus amigos, por amor daquele filósofo, por amor de mim, continuei a resistência. Os vegetarianos vos serão gratos. Tereis morte gloriosa e sepultura honrada, com ervas e arbustos. Não é preciso pedir, como o poeta, que vos plantem um salgueiro no cemitério; plantar é conosco; nós cercaremos as vossas campas de salgueiros tristes e saudosos. Que é nossa vida? Nada. A vossa morte, porém, será a grande reconstituição da humanidade. Que o Senhor vo-la dê suave e pronta.

Compreende-se que, ocupado com esta passagem de doutrina à prática, pouco haja atendido aos sucessos de outra espécie, que, aliás, são filhos da carne. Sim, o vegetarismo é pai dos simples. Os vegetarianos não se batem; têm horror ao sangue. Gostei, por exemplo, de saber que a multidão, na noite do desastre do Liceu de Artes e Ofícios, atirou-se ao interior do edifício para salvar o que pudesse; é ação própria da carne, que avigora o ânimo e a cega diante dos grandes perigos. Mas, quando li que, de envolta com ela, entraram alguns homens, não para despejar a casa, mas para despejar as algibeiras dos que despejavam a casa, reconheci também aí o sinal do carnívoro. Porque o vegetariano não cobiça as causas alheias; mal chega a amar as próprias. Reconstituindo segundo o plano divino, anterior à desobediência, ele torna às idéias simples e desambiciosas que o Criador incutiu no primeiro homem.

Se não pratica o furto, é claro que o vegetariano detesta a fraude e não conhece a vaidade. Daí um elogio a mim mesmo. Eu não me dou por apóstolo único desta grande doutrina. Creio até que os temos aqui, anteriores a mim, e, — singular aproximação! — no próprio conselho municipal. Só assim explico a nota jovial que entra em alguns debates sobre assuntos graves e gravíssimos.

Suponhamos a instrução pública. Aqui está um discurso, saído esta semana, mas proferido muito antes do dia 11 de março; discurso meditado, estudado, cheio de circunspeção (que o vegetariano não repele, ao contrário) e de muitas pontuações alegres, que são da essência da nossa doutrina. Tratava-se dos jardins da infância. O Sr. Capelli notava que tais e tantos são os dotes exigidos nas jardineiras, beleza, carinho, idade inferior a trinta anos, boa voz, canto, que dificilmente se poderão achar neste país moças em quantidade precisa.

Não conheço o Sr. Maia Lacerda, mas conheço o mundo e os seus sentimentos de justiça, para me não admirar do cordial não apoiado com que ele repeliu a asseveração do Sr. Capelli. Não contava com o orador, que aparou o golpe galhardamente: "Vou responder ao se não apoiado, disse ele. As que encontramos, remetendo-as para lá, receio, que, bonitas como soem ser as brasileiras, corram o risco de não voltar mais, e sejam apreendidas como belos espécimes do tipo americano”.

Outro ponto alegre do discurso é o que trata da necessidade de ensinar a língua italiana, fundando-se em que a colônia italiana aqui é numerosa e crescente, e espalha-se por todo o interior. Parece que a conclusão devia ser o contrário; não ensinar italiano ao povo, ante ensinar a nossa língua aos italianos. Mas, posto que isto não tenha nada com o vegetarismo, desde que faz com que o povo possa ouvir as óperas sem libreto na mão, é um progresso.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

NECESSIDADE DE EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL?


A experimentação animal é necessária para o bem-estar e a saúde humana? A resposta para essa pergunta é não. Para explicar de uma maneira bem simples, se assim o fosse, não seria necessária a existência de medicamentos de uso veterinário e medicamentos de uso humano, e poderíamos escolher entre nos operarmos em um médico ou um veterinário. Com efeito, não haveriam diferenças entre ambas as profissões. 
Qualquer pessoa que tenha estudado biologia aprende que organismos evoluem. Evoluir significa diferenciar, derivar. Ratos e camundongos são animais parecidos, mas não idênticos; eles derivaram de um mesmo ancestral comum, cada qual com suas características. Mas uma vez que as diferenças se acumularam, duas espécies surgiram, próximas, mas diferentes. Fato é que ambos os organismos reagem de maneiras diferentes a determinadas drogas, a determinados tratamentos. Não basta sabermos que ratos pesam mais do que camundongos para corrigirmos a dose de uma droga, pois não existe qualquer linearidade que confira cientificidade a essa extrapolação. As diferenças entre espécies são qualitativas e não quantitativas. 
Da mesma forma acontece com o rato em em relação ao hamsters, o hamster em relação ao porquinho-da-índia, esse em relação ao coelhos, os sapos, os pombos, cães, gatos, porcos, macacos e, é claro, o homem. Nenhum resultado que se obtenha desses animais poderá ser aplicado ao homem, porque ao contrário do que querem nos fazer acreditar, o rato não é um ser humano que pesa quinhentas vezes menos. Também, a diferença de 0,4% entre os genes do chimpanzé e do homem não tornam esse um modelo recomendável para a pesquisa de doenças humanas em 99,6% dos casos. 
Animais utilizados em experimentação, para serem considerados "bons", precisam pertencer a linhagens específicas. Eles precisam ser o mais homogêneos possível, com o mínimo de variação genética. Dessa forma, os resultados que se obtém desses experimentos são bem agrupados. Se ao invés de utilizarem animais de mesma linhagem fossem utilizados animais com diferentes procedências, ainda que pertencentes à mesma espécie, os resultados obtidos seriam inconclusivos, pois mesmo dentro de uma mesma espécie as diferenças tornam as reações aos tratamentos muito variadas. Daí pode-se entender a inconsistência da defesa da utilização de animais. 
A alegação mais comum para defender essas práticas é a de que seres humanos e animais domésticos são diretamente beneficiados por esses experimentos. Defende-se que, sem as pesquisas em animais, o ser humano não disporia de vacinas, transplantes, anestesias, nem das drogas que pretensamente tratam as diferentes doenças. Alarma-se para a idéia de que o fim da experimentação animal representaria o fim da humanidade. O declínio em nossa qualidade de vida, em nossa longevidade. Estas alegações são, para dizer o mínimo, enganosas. 
Embora todos esses tratamentos tenham sido exaustivamente testados e aprovados em animais, todos eles se mostraram falhos em produzir efeitos promissores em seres humanos, pelo menos em um primeiro momento. Muitos deles, apesar da segurança comprovada em animais, mostraram-se prejudiciais a seres humanos, produzindo severos efeitos colaterais. E se a intenção desses experimentos era impedir que seres humanos fossem utilizados como cobaia, isso não aconteceu. 
Se hoje transplantes de órgãos podem ser realizados com maior sucesso e existem vacinas um pouco mais seguras, foi porque ao longo dessas últimas décadas esses tratamentos foram testados em seres humanos, muitas vezes às custas de suas vidas e saúde. O pretenso sucesso desses tratamentos em tempos mais recentes, embora possa vir a ser contestado em outras instâncias, não pode ser atribuído ao uso de cobaias animais, mas sim ao uso de cobaias humanas. 
Seres humanos morreram nos primeiros transplantes de órgãos, seres humanos sofreram severos efeitos adversos de vacinas do passado, e com base nessas tentativas e erros, a atual medicina foi construída. Não com base na experimentação animal. 
Mas, se a experimentação animal não beneficia aos humanos, por que a maioria das pessoas acredita que ela é essencial? Podemos dizer que em certo sentido a ciência funciona como uma religião, onde a autoridade do alto clero jamais é contestada; assim, um doutor jamais pode ser questionado, mesmo que seja um mero reprodutor de uma idéia que ouviu. O próprio cientista muitas vezes não se questiona, o que parece um contra-senso, mas ele assume que determinados pressupostos são verdadeiros e os defende cegamente. 
Em outra abordagem, a ciência é mercantilista. Ela funciona por interesses comerciais, e a experimentação animal é interessante nesse aspecto. Além de todos os equipamentos e insumos necessários para a manutenção de animais de laboratório (gaiolas, equipamentos de contenção, rações, etc) a indústria lucra com a experimentação animal. 
Indústrias, como a farmacêutica, obtêm seus lucros da venda de seus produtos, no caso, medicamentos. Por isso, elas necessitam convencer a população de que seus produtos são vitais para sua qualidade de vida. Esforços são feitos para convencer as pessoas de que o aumento em nossa expectativa de vida tem relação direta com a enorme disponibilidade de drogas e tratamentos atuais. Poucos atribuem essas melhorias às nossas atuais condições de moradia, de higiene, abastecimento de água limpa, saneamento, segurança alimentar, etc, fatores estes que também passaram a preponderar nas últimas décadas. 
O papel da experimentação animal 
Nossa vida e bem-estar não dependem da experimentação animal. As experiências com animais apenas resguardam os interesses da indústria farmacêutica e associadas, possibilitando colocar no mercado drogas nem sempre seguras às pessoas. Experimentos em animais são conduzidos para amenizar as responsabilidades de laboratórios que lançam no mercado produtos que mais tarde poderão vir a prejudicar seres humanos. 
Por exemplo, se o xampu que não deveria arder nos olhos queimou os olhos de uma menina, isso é visto como uma fatalidade; testes realizados em olhos de coelhinhos mostram que o produto é seguro. E quem pode provar que o cigarro está associado a alguma doença, quando experimentos com animais mostram resultados inconclusivos? 
Após passarem por todos os testes 'necessários', em animais, e serem colocadas no mercado, muitas drogas precisam ser recolhidas. Isso porque seus efeitos adversos começam a se manifestar na população, muitas vezes de forma grave. Os testes em animais não podem prever esses efeitos, e isso é de conhecimento da indústria, mas há uma necessidade de que eles sejam conduzidos para prevenir a indústria de futuros processos. 
Se todos os testes considerados necessários pela legislação forem realizados em animais a indústria se isenta de sua responsabilidade. As pessoas que vierem a falecer em decorrência do uso de um medicamento tornam-se fatalidades. Números aceitáveis frente aos possíveis benefícios do medicamento. 
A ciência que utiliza animais de laboratório não é uma ciência boa, não apenas porque vitima animais inocentes, mas porque os resultados que produz prejudicam também ao ser humano. Esta metodologia conduz ao erro, ao atraso, a dados errôneos, à má-interpretação, à incoerência e ao desperdício de vidas. A abolição da vivissecção não é algo para ser pensado para o futuro, ela deveria ser algo do passado, é urgente. A utilização de animais em experimentos é um erro que se propagou na ciência e que ainda não foi suficientemente questionado. Cabe à sociedade como um todo se mobilizar no sentido de extingui-la.


perfil greif
Sérgio Greif -  sergio_greif@yahoo.com
Biólogo formado pela UNICAMP, mestre em Alimentos e Nutrição com tese em nutrição vegetariana pela mesma universidade, docente da MBA em Gestão Ambiental da Universidade de São Caetano do Sul, ativista pelos direitos animais, vegano desde 1998, consultor em diversas ações civis publicas e audiências públicas em defesa dos direitos animais. Co-autor do livro "A Verdadeira Face da Experimentação Animal: A sua saúde em perigo" e autor de "Alternativas ao Uso de Animais Vivos na Educação: pela ciência responsável", além de diversos artigos e ensaios referentes à nutrição vegetariana, ao modo de vida vegano, aos direitos ambientais, à bioética, à experimentação animal, aos métodos substitutivos ao uso de animais na pesquisa e na educação e aos impactos da pecuária ao meio ambiente, entre outros temas. Realiza palestras nesse mesmo tema. Membro fundador da Sociedade Vegana.

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