terça-feira, 14 de julho de 2015

Zoológicos

Por Sérgio Greif 
Na presente data em que escrevo este texto, 20/08/14, me dirijo à Limeira (SP) para ministrar palestra sobre animais de zoológicos. Trata-se de um tema sobre o qual sempre nos cabe refletir, ainda mais quando são tantas denuncias e tantos incidentes envolvendo esses empreendimentos que nos chegam a cada dia. A noção romântica que muitas pessoas possam ter destes parques está longe da realidade. Estes não são locais de lazer, educação ambiental ou pesquisa, mas de sofrimento interminável para os animais.
Um pouco de história
A visão de animais como “coisas” ou “objetos” a serem utilizados para nossos propósitos não é recente na história humana, e como todas as demais “coisas”, animais parecem ter sido sempre colecionados por seres humanos, mesmo no período pré-histórico.
Há sítios arqueológicos pertencentes aos mais variados grupamentos humanos que demonstram a presença de ossadas de animais juntamente a restos humanos, isso mesmo nos casos de grupos que ainda não haviam desenvolvido a agricultura ou pecuária. Os arqueólogos creem que estes animais não eram mantidos por razões econômicas, nem tampouco parecem ter sido aproveitados em alguma refeição. Possivelmente muitos desses animais eram crias de animais abatidos em caçadas ou pertenciam a espécies que sequer eram caçadas. Eram aparentemente mantidos pelo prazer de mantê-los.
Já nas primeiras civilizações, animais selvagens eram transportados vivos de regiões remotas para serem utilizados como moeda de troca por outros itens. Na civilização mesopotâmica, por exemplo, onde o comércio de itens de sobrevivência já havia atingido certa robustez, itens de luxo e entretenimento também tinham seu mercado, entre eles animais vivos.
Não raro os nobres e comerciantes abastados adquiriam leões ou outros animais, os quais mantinham como símbolo de estatus, riqueza ou poder. Quanto mais exótico, feroz ou raro, melhor era.
Foi no Egito, na cidade de Nekhen, 5.500 anos atrás, que surgiu o primeiro zoológico conhecido na história. Nele eram mantidos centenas de animais entre hipopótamos, elefantes, antílopes, babuínos, felinos selvagens. No entanto, a proposta dessa coleção não era a exibição pública dos animais.
Essa coleção particular servia tão somente ao faraó e à elite egípcia, que podiam acompanhar os animais se caçando dentro dos recintos, já que muitas vezes predadores e presas eram colocados no mesmo recinto. Também, a coleção servia para que o faraó pudesse caçar animais em um ambiente mais controlado, sem se expor demasiado aos riscos inerentes às caçadas. A coleção servia também para demonstrar riqueza e poder aos dignitários estrangeiros.
A faraona Hatshepsut , por volta de 3.500 anos atrás, costumava colecionar animais que eram trazidos como tributo das províncias ao sul, especialmente animais de Punt (Somália) como aves, macacos, leopardos, rinocerontes, girafas, etc. Foi Hatshepsut que abriu o primeiro zoológico para visitação pública e ela o utilizava como demonstração de poder.
Na China antiga, o fundador da dinastia Zhou, Imperador Wen Wang, fundou 3.000 anos atrás um zoológico o qual chamou Lingyou (Jardim do Encorajamento da Inteligência). Tratava-se de 1.500 acres de terra com coleção de animais oriundos de toda a China, incluindo o panda gigante. O propósito de seu zoológico era que a população cada vez mais urbanizada tivesse a oportunidade de conhecer os animais selvagens que ocorriam na região.
Kublai Khan, neto de Genghis Khan, no século XIII, expandiu os zoológicos na China, mas de centros de contemplação da fauna transformou-os em anexos para a caça. Kublai Khan, como os mongóis até hoje, apreciava a caça com falcões, cães e em seu caso utilizava também felinos domesticados. Diz-se que possuía 1.000 guepardos de caça e milhares de aves de rapina, e muitas vezes caçava animais de sua própria coleção.
Roma foi a responsável de levar para a região do Mediterrâneo diversos animais pertencentes às suas províncias conquistadas no norte da Europa, África e Ásia Menor. Essas coleções de animais, chamadas de Vivarium eram secundárias frente ao objetivo principal: o massacre de animais nos anfiteatros e arenas. Romanos se deleitavam em assistir a espetáculos onde animais se combatiam até a morte, ou em que seres humanos lutavam contra animais.
O imperador azteca Montezuma (século XVI) mantinha enormes coleções de animais em Tenochtitlán, Teotihuacán,Tlalelolco, Texcoco e Iztapalapánas quais chamava Totocalli (“casa de animais”, em náhuatl). Consistia em conjuntos de construções divididos em espaços onde vários animais eram mantidos cativos para serem usados como sacrifício ou outras finalidades, inclusive para demonstrar poder para os estrangeiros.
O Totocalli de Tenochtitlánpossuía 300 tratadores para cuidar dos animais; possuía tantas aves de rapina que necessitava de 500 perus por dia para alimentá-las.Especula-se que jaguares e pumas pudessem ser alimentados com carne oriunda de sacrifícios humanos. Possuía também uma grande quantidade de serpentes além de 10 lagoas de água doce e 10 lagoas de água salgada. Esses zoológicos aztecas também possuíam uma coleção de homens e mulheres deformados, aleijados, anões, corcundas e albinos.
Já na Idade Moderna, caracterizada pela Renascença, as grandes navegações e o requinte das nobrezas europeias, as coleções de animais ganharam novo impulso. A Europa colonizava a África e a Ásia e descobria a América. Animais exóticos eram trazidos nos navios, juntamente com escravos e outras mercadorias e abasteciam os monarcas, nobres e aristocratas. Em breve, mesmo os monastérios e municipalidades já possuíam sua própria Menagerie.
A maior parte dos animais que não morriam durante a viagem, morria logo após a chegada à Europa, seja por doenças adquiridas durante a viagem, pela má alimentação, pelas instalações inadequadas, seja pelo clima, seja pelo que fosse. Aqueles que adquiriam esses animais não conheciam seus hábitos e isso explica muito do insucesso em sua manutenção.
Animais então eram apenas mercadoria sem valor inerente. Seu preço em dinheiro era determinado com base em beleza, raridade e dificuldade de se trazer à Europa exemplares vivos. Embora uma grande percentagem desses animais morresse no caminho o lucro obtido com a venda dos exemplares vivos garantia a continuidade do negócio.
D. Manuel I, de Portugal, que apoiou os descobrimentos e instituiu monopólios comerciais, praticamente monopolizou também o comércio de macacos e aves que vinham da África e América para abastecer a Europa.Ele mesmo possuía uma enorme coleção de animais no Parque Real, entre macacos, araras e papagaios do Brasil e babuínos, elefantes, leopardos e um rinoceronte da África.
Luiz XIV, o Rei-Sol, construiu por volta de 1665 uma ménagerie no Palácio de Versailles, na França. Essa coleção de animais foi mantida e incrementada ao longo dos anos por seus sucessores, até que em 1789, durante a Revolução Francesa, revoltosos soltaram grande parte dos herbívoros pertencentes à coleção real para que os famintos pudessem caçá-los e comê-los.
Após a Revolução, em 1793, a Menagerie du Parc de Versailles foi transferida para o Jardin des Plantes e aberta ao público. Sendo mantida pelo Muséum National D’Historie Naturelle, essa coleção foi considerada pela primeira vez por critérios científicos.
De todas as coleções particulares e zoológicos que foram constituídos na Europa desde o século XVI, o mais antigo que existe até hoje é o Tiergarten Schönbrunn, de Viena, que começou como uma coleção da família Hapsburg, em 1752 e foi aberto ao público em 1779. A própria família imperial austríaca promovia excursões de captura de espécimes na América e África para enriquecer sua coleção.
Na Inglaterra animais exóticos eram mantidos pelo menos desde o século XIII. Leões eram mantidos na Torre de Londres desde 1210. Eram comuns incidentes envolvendo esses animais e pessoas e a manutenção da coleção foi descontinuada no século XIX.
Em 1826 foi fundada a Zoological Society of London, que construiu um zoológico de 16 alqueires no Regent Park, onde ainda se encontra o London Zoo. Curioso que o principal objetivo da Zoological Society of London era identificar novas espécies de animais que pudessem ser exploradas comercialmente pelo ser humano.
De fato era de se estranhar que todas as domesticações animais haviam ocorrido tantos milhares de anos antes, e desde então mais nenhuma. O empreendimento, porém, falhou. Nenhuma das espécies estudadas apresentava características zootécnicas que justificassem sua exploração. Para ser justo, a Zoological Society of London apresentou ao mundo o hamster dourado, hoje popular animal de estimação. Foi ela também que cunhou os termos “Zoological Park” e “Zoo”.
Podemos imaginar que tipo de vida era essa que esses animais tinham. Viviam confinados em pequenos espaços, encarcerados em pesadas gaiolas vitorianas, com vários outros animais, vendo os passantes se aproximarem por entre as barras geladas de metal, fazendo barulho, provocando-os, algumas vezes cutucando-os com varas para verem eles se mexerem, vivendo em um ambiente pobre, sujo, fétido . . . Nessa época as pessoas podiam mesmo tocar os animais, alimentá-los.
Os animais passavam o dia assustados. Ou entediados, frustrados. Privados de todas as suas atividades naturais, desenvolviam patologias psíquicas, comportamentos estereotipados ou anormais. Estes comportamentos ainda podem ser observados em animais cativos hoje em dia: Animais que apresentam comportamento repetitivo, andando de um lado para o outro da cela. Animais que se alimentam de suas próprias fezes. Animais que tentam cavar no concreto. Elefantes que balançam a cabeça, macacos que se masturbam compulsivamente, papagaios que se automutilam . . .
Após a transferência da família real e da corte portuguesa para o Brasil, D. João VI, escreveu,em 1819, para o governador de Angola exigindo que todos os navios que partissem para o Brasil deveriam trazer “um viveiro de pássaros esquisitos”. Entre 1819 e 1823 ele recebeu 762 pássaros vivos, mas milhares chegavam mortos. D. João VIpediu também 6 zebras, para diversão dos príncipes, mas elas morriam no caminho.
Expondo seres humanos em zoológicos
Podemos, por essa revisão histórica, ver que animais nada mais eram do que representantes involuntários da extensão do poder dos governantes. Quando um faraó expunha um leão, ou um rei português expunha uma zebra ele de certa forma estava dizendo: “Vejam até onde se estendem meus domínios”. A proposta original das coleções de animais e zoológicos nada mais era do que isso.
O propósito educacional dessas coleções também era distorcido. Elas não ensinavam um senso de reverência pela vida, pelo contrário, ensinavam que a beleza podia ser roubada e mantinha encarcerada. Animais exóticos sempre atraíram multidões, mas isso nada ensinava em relação ao que eles realmente eram. As pessoas não viam os animais como eles são, mas reflexos do que eles são. Acima disso, animais eram vistos como caricaturas de nós mesmos, seres humanos imperfeitos, que estão enjaulados para nos fazer rir e nos lembrar de nossa própria superioridade.
Fato é que, juntamente com essas coleções de animais oriundos dos territórios descobertos e conquistados, também se usava expor seres humanos adquiridos nas mesmas condições. Quando os navegadores se apresentavam aos seus respectivos reis levando amostras das “criaturas” que viviam além do oceano, além dos animais, traziam também alguns exemplares humanos.
Foi assim que os primeiros africanos, asiáticos, americanos e oceânicos chegaram ao Velho Mundo. Pessoas pertencentes a várias etnias eram exibidas em zoológicos e coleções itinerantes, de forma degradante, para satisfazer a curiosidade de um público pagante.
Exposições coloniais mostravam ao público europeu frações dos hábitos de vida dos povos conquistados, por esse motivo, esses zoológicos reproduziam as vilas de onde essas pessoas haviam sido tiradas. E exemplares desses grupos eram ali mantidos com suas roupas tradicionais desempenhando atividades que seriam típicas de sua cultura.
Assim, zoológicos de pessoas possuíam vilas que representavam fragmentos de uma aldeia ameríndia ou africana, ou alguma cidade asiática. E seus “habitantes” deveriam entreter os europeus com seus costumes peculiares ou deixando tocar seus corpos tão diferentes.
Se o objetivo alegado era promover um melhor entendimento dos europeus sobre outras culturas é claro que isso não podia ser feito dessa forma. Tudo o que essas exposições faziam era degradar o ser humano e “provar” a superioridade cultural europeia.
Merece destaque a história das mulheres da etnia khoisan levadas à Europa para exposição, em especial a história de Saartjie Baartman, que viveu entre 1789 e 1815 e ficou conhecida como a Vênus Hotentote (hotentote era como os khoisans eram chamados pelos africânders; os ingleses os chamavam bushmen e em português eles foram chamados bosquímanos).
Não se sabe ao certo seu nome de nascença, Saartjie (“Sarinha”) foi o nome que os holandeses lhe deram. Saartjie sofria de esteatopigia, possuía nadegas enormes, o que levou à falsa crença de que todas as mulheres hotentotes possuíam a mesma característica. Além disso, ela tinha sinus pudores, enormes lábios vaginais.
Em 1810 ela foi levada para a Inglaterra para ser exposta, por um valor a mais era permitido tocá-la nas partes intimas. Em 1814 ela foi vendida para um francês que a expôs ainda mais e a alugava para animar festas, inclusive a de reintronização de Napoleão Bonaparte (1815), onde a moça sofreu bastante nas mãos dos bêbados.
Quando eventos políticos fizeram com que as exposições fossem canceladas, a moça foi obrigada a se prostituir e se tornou alcoólatra, vindo a morrer poucos meses depois. Para lucrar com ela mesmo após sua morte, seu proprietário vendeu o cadáver para o Musée de l’Homme, em Paris.

Exposições de seres humanos persistiram até por volta de 1950, principalmente por meio de circos itinerantes que apresentavam pessoas com deformidades e problemas genéticos (mulheres peludas, gêmeos siameses, anões, gigantes, etc). Após isso, a sociedade passou a considerar esses freak shows como degradantes demais para serem tolerados.
Há uma justificativa para os zoológicos?
O ser humano inventa desculpas para justificar suas más ações. Isso nos cria uma sensação de conforto, ainda que as desculpas sejam pouco convincentes. É fácil verificar que um zoológico não pode ser justificado pelo ponto de vista ético: O que justificaria manter animais selvagens em gaiolas e jaulas? O ser humano cria suas justificativas...
A justificativa de que os zoológicos possuem função socioeducativa, em diferentes variedades de colocações, tem sua máxima na frase “conhecer para preservar”. Isto pressupõe que se não conhecemos algo, não temos interesse em preservá-lo.
Talvez essa mesma desculpa tenha sido utilizada no passado para se manter exposições coloniais na Europa. Mas será que a única forma de um europeu criar alguma simpatia por indígenas brasileiros seria manter alguns exemplares vivos de tupinambás em uma exposição?
E embora aquela pequena criança senegalesa exposta em um zoológico em Paris tenha potencial de despertar simpatia dos frequentadores, não vejo como isso possa se refletir de forma positiva quanto à consideração dos interesses dos senegaleses que permaneceram em seu território.
Quer essa desculpa que esses poucos exemplares depositados na coleção sejam embaixadores de seus compatriotas na natureza?Isso ignora o fato de que aqueles animais, que de fato tem o potencial de gerar simpatia das pessoas, não são representantes de seus pares na natureza. A despeito do lazer e da curiosidade, o zoológico não cria qualquer espécie de consciência nas pessoas.
Uma criança que vê um elefante em um recinto de fato aprecia o animal, mas a mensagem que ela recebe, ainda que de maneira subliminar, é a de que podemos aprisionar animais. Animais são inferiores e nós somos superiores. E nossa superioridade nos permite capturar um animal na natureza e mantê-lo em cativeiro. Criamos a simpatia pelo animal, mas à medida que o animal se assemelha a nós mesmos.
É aí que quando encostamos ao lado dos visitantes em um zoológico podemos escutar toda sorte de comentários: “Que urso lindo, parece meu tio bonachão”, “Credo, que lagarto horrível” . . . De toda forma, não precisamos dos zoológicos para conhecer os animais, nem acho que o zoológico permita esse conhecimento.
Quando as exposições de animais começaram essa era a única forma de um europeu ver um rinoceronte ou um chimpanzé. A televisão então não existia e se o cinema existia, o que ele mostrava eram filmes onde os animais eram subjugados por algum homem branco criado desde a infância por primatas africanos.
Foi apenas na década de 1960 e 1970 que começaram a surgir documentários sobre vida selvagem que de fato mostravam os animais vivendo em seus habitats. Esses documentários, mais do que qualquer zoológico do mundo, podiam nos apresentar os animais tais como eles eram.
Alguém poderia defender que assistir animais pela televisão não tem o mesmo efeito que poder olhar para eles pessoalmente, mas tampouco vê-los confinados em gaiolas pode nos mostrar o que esses animais realmente são. Em termos de educação e respeito, os documentários da natureza e sobre vida selvagem nos ensinam mais do que qualquer zoológico.
Outra desculpa comum para justificar a manutenção de zoológicos é a de que essas coleções são depositárias de animais ameaçados, e talvez representem a solução para o problema de algumas espécies em vias de extinção.
Ora, de que adianta manter em um zoológico alguns poucos exemplares de determinada espécie enquanto seu habitat é suprimido? Qual a idéia por trás desse raciocínio? Manter indefinidamente essas espécies em cativeiro sem jamais poder introduzi-las? Afunilar sua diversidade genética a alguns poucos exemplares representantes da espécie em cativeiro e manter essas populações indefinidamente cruzando entre si? Não vejo aí qualquer sentido nessa espécie de preservação.
Preservação de fato é a preservação de um bioma, a preservação da espécie em seu habitat, A preservação da variabilidade genética dentro do grupo. Nada disso se pode conseguir com zoológicos.
A despeito de alguns poucos programas que foram bem sucedidos em introduzir exemplares de zoológicos em vias de extinção em seu ambiente selvagem, mais resultados ainda teriam sido obtidos se parques fossem criados em torno das áreas de ocorrência da espécie antes da mesma ser colocada em perigo de extinção.
A pesquisa, outra das justificativas para a manutenção de zoológicos, em grande parte não necessitaria ser realizada no âmbito de uma instituição que mantém animais em cativeiro. Pesquisas de preservação podem ser realizadas com animais em seu ambiente natural. Aliás, melhor que seja assim. A parcela de atividades que demandariam, de fato, animais cativos é justamente aquelas pesquisas que visam aprimorar as formas de manutenção de animais cativos. Há um ciclo vicioso aí.
A outra justificativa que normalmente se fornece para a manutenção de animais em zoológicos é a de que zoológicos representam uma alternativa de lazer barata e, portanto, acessível para parcelas significativas da população. Ora, que fosse um conflito real de interesses, de um lado temos a prisão sem justificativa de animais que nada fizeram para merecer isso, de outro temos pessoas querendo se divertir vendo esses animais, qual interesse deve prevalecer?
Além disso, há tantas outras formas de se divertir de forma acessível que não demandam o aprisionamento de animais, realmente essa é uma desculpa pouco defensável.
Entendo que a biofilia, a satisfação em conviver com outras espécies, seja natural ao ser humano, mas para que tal convivência seja saudável é importante que ela seja o mais harmônica possível. Em um passeio pelo Horto Florestal vemos macacos e aves as mais diversas, vemos uma variedade de insetos, vemos patos que apesar de não serem nativos estão ali soltos e se sentem à vontade. Não encontraremos em um parque como este a variedade que se encontra em um zoológico, mas mais do que quantidade devemos primar pela qualidade. Um parque razoavelmente equilibrado, onde se possa observar uma variedade de animais de, talvez, 15 espécies,cada qual desempenhando sua função ecológica, tem um potencial de educação e lazer maior do que um jardim zoológico com uma variedade de 200 espécies acumuladas em pequenos recintos onde as atividades naturais mais elementares estão restringidas.
A vida por trás das grades
Recentemente, o vereador de Goiânia, sr. Zander Fábio Alves da Costa (PSL) propôs a extinção do zoológico local. Sua proposta encontrou oposição desde a população local até o conselho de medicina veterinária. Basicamente a linha de defesa para a manutenção do zoológico foi de que ali os animais não são maltratados. Que ali eles recebem a alimentação correta, água e estão protegidos de predadores. Que se houvessem maus tratos todos saberiam.
Pois bem, é possível que em muitos aspectos a vida de um animal de zoológico possa ser considerada superior á vida de um animal na natureza. Dificilmente em um zoológico atual um impala possa ser caçado por um leão, então pelo menos no que diz respeito á predação os animais estão mais seguros.
Também é fato que grande parte das preocupações de um animal selvagem na natureza, ou seja, o forrageamento atrás de alimentos não chega a ser uma preocupação do animal em um zoológico, já que se tudo estiver funcionando bem o alimento aparecerá por uma portinha na hora certa.
As causas de morte e sofrimento da maior parte dos animais na natureza, a predação, a disputa por territórios ou a inanição parecem ser eliminadas quando o animal se encontra em um zoológico. Pelo ponto de vista humano essa pode parecer uma ótima alternativa de vida, mas não podemos analisar a situação de forma tão enviesada.
Cada animal possui seu umwelt, sua própria realidade, sua percepção de mundo. Manter organismos em recintos e supri-los com o mínimo para mantê-los vivos é privá-los de todas as demais experiências que lhes seriam naturais. Animais de zoológico que as pessoas podem considerar saudáveis e em ótimas condições não estão vivendo, apenas sobrevivendo.
Portanto, mesmo nos zoológicos considerados referência, que mantém seus recintos limpos, com enriquecimento ambiental, alimentação de qualidade e em quantidade suficiente, os animais que ali vivem não levam vidas plenas. São apenas reflexo do que seriam se estivessem em liberdade.
Dificilmente um zoológico conseguirá prover para os animais ali alojados as condições de vida que eles teriam caso se encontrassem em condições naturais. Um felino solto percorre quilômetros por dia; em um zoológico tudo o que ele pode fazer é percorrer aqueles poucos metros de jaula milhares de vezes em um mesmo dia. Na natureza primatas ocupam seu tempo forrageando, ou catando ectoparasitas uns dos outros, ou explorando seu território; em um zoológico essa possibilidade não existe, os animais passam o dia entediados ou expressando comportamentos anormais e estereotipados (e o que fazer com um macaco que se masturba em frente aos visitantes?).
Elefantes na natureza vivem em bandos de vários indivíduos, que exploram seu ambiente em busca de alimentos e fontes de água; no zoológico alguns poucos exemplares são forçados a conviver em um recinto restrito e apresentam comportamentos estereotipados, como o balanço de cabeça que só ocorre em animais cativos.
E não se pode deixar de notar que os animais que se encontram expostos em um zoológico são apenas uma fração dos animais que ali se encontram abrigados. Para além das jaulas e recintos de exposições, há todo um universo de animais considerados excedentes, apinhados em recintos menores e menos cuidados. Esses animais aguardam por um destino, que seja a venda para outros zoológicos, para colecionadores particulares, para centros de pesquisa que poderão dissecá-los, para fazendas de caça, etc. E por enquanto estamos tratando dos melhores zoológicos.
Nos piores zoológicos as denúncias afloram. Apenas no ano de 2013, mais de 500 mil animais morreram em zoológicos de todo o mundo devido a condições inapropriadas às quais foram submetidos. Para nos atermos apenas a fatos mais recentes:
Entre janeiro e março de 2010, 11 tigres siberianos foram deixados morrer de fome no zoológico de Shenyang (China). Argumentou-se que os animais comiam demais. Mas suas carcaças puderam ser aproveitadas, sendo partes destas vendidas a bom preço para abastecer a demanda por produtos derivados de tigres, usados na medicina tradicional chinesa.
O país hoje possui menos de 50 tigres em liberdade e mais de 5.000 em cativeiro e o zoológico de Shenyang não foi o único onde foram encontrados problemas. Em apenas 3 meses de investigação não muito aprofundada o órgão ambiental nacional da China encontrou outros 50 zoológicos que abusavam de animais no país.
Igualmente, o zoológico de Surabaya, na Indonésia, foi mundialmente denunciado pelo estado de inanição e miséria em que os animais se encontram. Muitos outros zoológicos, como o Melaca, também na Indonésia, foram denunciados internacionalmente.
E todos se recordam da girafinha Marius, morta em fevereiro de 2014 e retalhada em frente ao público, inclusive crianças, no Zoológico de Copenhagen, para alimentar os leões. Se usou dizer que a girafinha era um animal excedente que poderia cruzar com sua própria mãe no futuro, mas essa desculpa era bastante fraca, pois havia vários interessados em adotar o animal.
Festas às sextas-feiras á noite no Zoológico de Londres já foram denunciadas devido aos abusos cometidos contra os animais. Exceto pelo barulho que em si já estressa os animais demasiadamente, há relatos de pessoas invadindo a jaula dos animais e cometendo abusos. Para citar alguns, uma mulher foi pega agredindo uma ave, um homem foi pego jogando cerveja no tigre, outro foi pego nadando nu na piscina dos pinguins e várias borboletas foram encontradas esmagadas. O zoológico argumenta que as festas são lucrativas, mas podemos perguntar: “E daí?”
No Zoológico Dählhölzli, de Berna, Suíça, um filhote de 5 meses de urso foi morto porque, segundo se alegou, ele sofria Bullying de seu pai. Ora, é natural que machos de ursos não tolerem filhotes, ainda que sejam seus filhos. Ursos são, em geral, animais solitários. O pessoal do zoológico não sabia disso. O ursinho foi morto e empalhado, e exposto ao lado da jaula dos ursos “para que as crianças saibam que a natureza é cruel”. Eis a educação ambiental que se pretende que os zoológicos ensinem.
No Brasil há 110 zoológicos e 13 aquários. Desses, 31 são particulares, 69 municipais, 04 estaduais, 02 do exército e os demais 17 são fundações ou administrações mistas. No Estado de São Paulo são 60 empreendimentos, a maior parte dos quais encontra-se denunciado.
Provavelmente o zoológico que se encontra com maior número de denúncias seja o zoológico de Taboão da Serra (Parque das Hortências), que vinha recebendo enorme quantidade de denúncias devido às péssimas condições em que os animais se encontravam alojados, além de alta taxa de mortandade em pequeno espaço de tempo.
O zoológico foi interditado e vários de seus animais foram encaminhados para outros centros, como por exemplo a Associação Mata Ciliar, em Jundiaí, para triagem dos espécimes possíveis de serem reintroduzidos em seu habitat natural
O Bosque dos Jequitibás, em Campinas, foi denunciado pela morte de mais de 10 animais durante o ano de 2013, devido a maus tratos. Além disso, há denúncias contra os zoológicos de Araçatuba, Limeira, Sumaré, Guarulhos, Salvador . . .
No zoológico de Guarulhos, além dos elevados casos de mortes devido ao manejo e instalações inadequadas, foram registrados o desaparecimento de mais de cem animais, possivelmente para abastecer o comércio de animais silvestres e exóticos.
Mesmo no Zoo Safari, onde em tese os animais vivem em uma condição melhor, por estarem soltos e serem os visitantes quem adentram os recintos dentro de seus carros, as condições dos animais são bastante ruins. Funcionários do parque constantemente cutucam-nos com varas ou chicotes para que estes se movam, saiam dos recantos abrigados e embrenhem-se em meio aos carros. Creio até que viver no safári seja mais estressante do que viver no próprio zoológico.
Além dessas denúncias devido às condições de manutenção dos animais, há ainda os recentes eventos que ganharam destaque na mídia envolvendo zoológicos, como o caso do garoto que teve seu braço retalhado por um tigre no zoológico de Cascavel e o caso da girafa que morreu enforcada pela corda que suspende seu alimento, no zoológico de Belo Horizonte.
Embora estas sejam fatalidades e no caso do garoto a culpa seja muito mais de seu pai irresponsável do que do zoológico (e muito menos a culpa pode ser atribuída ao tigre, pois é isso que se espera que esses animais façam) tais episódios servem para nos lembrar que zoológicos não devem ser vistos como locais encantados e românticos, mas sim como locais de aprisionamento de animais inocentes.
O que fazer com os animais de zoológicos?
Com freqüência sou confrontado com o fato de que na maior parte dos zoológicos do mundo, e a maior parte dos animais que constituem suas coleções, o que encontramos são exemplares nascidos em zoológicos, ou que chegaram ao zoológico por meio de trocas ente instituições, ou ainda de apreensões de animais do trafico. São então animais já distantes da natureza.
Supondo que essa afirmação seja verdadeira, ainda assim pode-se questionar se zoológicos são a melhor alternativa para lidar com a questão dos animais cativos. Por tudo o que sabemos de zoológicos, sua prioridade é manter coleções de animais, alguns poucos exemplares de cada espécie e o máximo de diversidade de espécies de forma a tornar isso uma exposição interessante para o público.
Zoológicos geralmente não provêm aos animais mais do que isso. Eles não se especializam em grupos específicos de animais e em geral não apresentam solução para o problema. São simplesmente coleções de animais vivos e expostos ao público.
Em 2013 a Costa Rica decidiu fechar seus zoológicos estatais. A decisão foi baseada nos princípios que guiam aquela nação: Não é possível se dizer que o país preserva o meio ambiente quando tantos animais encontram-se ainda enjaulados.
Assim, a Costa Rica transformou seus zoológicos em jardins botânicos e parques naturais urbanos. Os animais que ali se encontravam foram transferidos para centros de resgate no próprio país, com vistas à sua reintrodução na natureza.
Importante dizer que os zoológicos do país mantinham principalmente animais pertencentes à fauna local, de modo que a reabilitação e reintrodução dos animais no próprio território são mais simples. Poderíamos pensar um mundo inteiro seguindo esse exemplo.
Não precisamos de animais em jaulas para conhecer essas espécies, documentários da natureza, livros e passeios no campo ensinam pessoas realmente interessadas no assunto.
Os animais hoje presentes nos zoológicos necessitam ser reabilitados e reintroduzidos na natureza, ou talvez estes sejam matrizes para uma próxima geração de animais que já nasçam sendo preparados para esse propósito. Mesmo animais mantidos por gerações em cativeiro tem potencial de serem introduzidos se o trabalho for bem feito.
A maior parte dos animais expressam principalmente comportamentos inatos e uma pequena parcela de comportamentos adquiridos, daí a facilidade de reintroduzi-los na natureza se estes estiverem gozando de boa saúde física.
Já os animais que expressam grande parte de seu comportamento baseado em comportamento adquirido (aprendido) estes podem ser ensinados a viver na natureza.
Apenas faz sentido falar em preservação ambiental quando o propósito for a reintrodução dos animais. Isso apenas poderá ser feito se a prioridade for a preservação dos ambientes naturais.
Porém, diferente da Costa Rica, a maior parte dos zoológicos do mundo possuem coleções de animais exóticos. É por esse motivo que o movimento pelo fim dos zoológicos deve ser realizado em nível mundial.
No estado atual, se apenas o Brasil resolvesse abolir os zoológicos, seus leões e elefantes possivelmente teriam de ser transferidos para outros zoológicos em outros países, talvez até para parques de caça. As reservas africanas talvez possam não ter interesse em receber esses animais que poderão criar problemas para as populações já instaladas. Além do que a capacidade suporte das reservas existentes pode já ter sido atingida.
Mas no caso de uma abolição dos zoológicos em âmbito mundial, ou de uma política sólida de repatriação de animais entre continentes, os animais seriam distribuídos por uma rede de instituições para centros de reabilitação instalados em cada bioma, e cada um deles desenvolveria um trabalho com vistas à reabilitação desses animais na natureza, ou na reprodução dos mesmos com objetivo de reintroduzir sua prole.
Importante que entendamos que nas condições físicas e psicológicas em que muitos dos animais de zoológico se encontram, eles em si jamais possam ser reintroduzidos. Talvez mesmo para o caso de animais hábeis, o processo de reintrodução não terminasse dentro de seu próprio ciclo de vida. Mas possivelmente seus filhotes já nascessem em estado de semi-liberdade e seus netos em estado de completa liberdade.
Uma outra possível alternativa para muitos dos animais que hoje se encontram em zoológicos são os santuários de animais. Santuários de animais, diferentemente de zoológicos, não priorizam a diversidade de espécies. Eles dão abrigo a grande número de indivíduos pertencentes a poucas espécies, e geralmente vivendo em espaços maiores. Santuários também priorizam o bem-estar do animal, e não sua exposição ao público.
Santuários podem se especializar em determinados grupos de animais, de modo que isso facilite seu manejo. Eles podem também ser estabelecidos de forma a atingirem certo nível de sustentabilidade econômica, caso não disponham de verbas públicas para sua manutenção (ver Sustentabilidade para Santuários de Animais - http://www.olharanimal.org/pensata-animal/sergio-greif/888-sustentabilidade-para-santuarios-de-animais).
Imagino, por exemplo, que uma enorme fazenda no cerrado pudesse ser transformada em um santuário para grandes herbívoros africanos que por diversos motivos não puderam ser repatriados. Na savana africana zebras, gnus, girafas, rinocerontes, elefantes, búfalos do cabo, avestruzes, antílopes, impalas e outros animais formam bandos mistos, pastando lado a lado de forma harmônica.
De forma bastante controlada essa área poderia receber a visitação de turistas, que não mais visualizariam animais em pequenos recintos, mas animais vivendo em ambientes muito próximos de seu ambiente original. Não seriam os animais que estariam presos, mas os visitantes, dentro de jipes, à semelhança do que ocorre em safaris fotográficos. Importante que tal empreendimento, para ser qualificado como santuário, tivesse o compromisso de continuar preservando o bem-estar dos animais em detrimento das opções de visualização por seres humanos.
Estes santuários não deveriam se transformar em zoológicos com jaulas maiores, nem parques safaris. Os jipes não deveriam se aproximar demasiadamente dos animais, nem persegui-los, nem alterar seu comportamento. Também, nesses santuários os animais deveriam ser todos estéreis, para evitar futuros problemas ecológicos (por tratarem-se de espécies exóticas) ou a perpetuação do empreendimento. A visitação seria apenas uma forma de manter a saúde econômica do santuário, pelo tempo de vida dos animais.
Tenho com frequência tratado do tema “santuários de animais” e muitas pessoas me perguntam se não seriam também estes locais de aprisionamento de animais e sua exposição ao público. É verdade que animais em um santuário encontram-se igualmente presos, mas essa prisão é circunstancial. Muitos desses animais, se fossem simplesmente soltos, morreriam (no caso de animais silvestres) ou causariam problemas ecológicos (no caso de animais exóticos). Mantê-los aprisionados em santuários, em muitos casos, talvez seja a única possibilidade.
A reabilitação de animais e sua liberação em áreas de soltura é um processo complexo que atravessa diferentes fases. As aves necessitam aprender a voar em enormes gaiolas voadeiras e após isso são liberadas em campo tendo ainda a alternativa de buscarem seu alimento junto a comedouros instalados por humanos até que consigam completa independência.
Pode se tratar de um processo de anos e por esse motivo esse processo necessita ser sustentável. Se não houverem verbas públicas destinadas para essa causa, penso que uma alternativa seria que esses empreendimentos fossem realizados nas proximidades de hotéis de campo. Os hóspedes poderiam acompanhar o trabalho realizado com a reabilitação das aves, observá-las nos comedouros, em estado de semiliberdade, e vê-las já em liberdade.
Diferente de zoológicos, tais empreendimentos sim teriam um potencial de educação ambiental, preservacionista e científico. Zoológicos são perpetuadores do cativeiro, mas esses empreendimentos funcionariam na direção oposta. Também não cabe o argumento de que tais santuários, devido á limitação de visitação, seriam elitistas. A visitação é mera forma de manter o sistema economicamente viável, de forma alguma é a prioridade de um santuário.
Creio que o futuro dos zoológicos seja o da própria extinção. As desculpas antes utilizadas para sua manutenção fazem cada vez menos sentido e mesmo as reformas cosméticas, que apresentam os recintos com menos barras nas jaulas e mais fossos, menos concreto aparente e mais enriquecimento ambiental, não enganarão as pessoas por muito mais tempo.
No futuro não existirão zoológicos, mas os animais serão tão, ou melhor, conhecidos pelos interessados. Animais não mais serão expostos para curiosos, mas as pessoas poderão visitá-los em reservas e santuários, eventualmente avistá-los em seu ambiente natural. Apenas então poderemos usar a palavra respeito para com os animais com alguma propriedade. 

perfil greif
Sérgio Greif | sergio_greif@yahoo.com
Biólogo formado pela UNICAMP, mestre em Alimentos e Nutrição com tese em nutrição vegetariana pela mesma universidade, docente da MBA em Gestão Ambiental da Universidade de São Caetano do Sul, ativista pelos direitos animais, vegano desde 1998, consultor em diversas ações civis publicas e audiências públicas em defesa dos direitos animais. Co-autor do livro "A Verdadeira Face da Experimentação Animal: A sua saúde em perigo" e autor de "Alternativas ao Uso de Animais Vivos na Educação: pela ciência responsável", além de diversos artigos e ensaios referentes à nutrição vegetariana, ao modo de vida vegano, aos direitos ambientais, à bioética, à experimentação animal, aos métodos substitutivos ao uso de animais na pesquisa e na educação e aos impactos da pecuária ao meio ambiente, entre outros temas. Realiza palestras nesse mesmo tema. Membro fundador da Sociedade Vegana.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Estabilizando a dor dos choques [Dr. phil. Sônia T. Felipe]



Cavalo ricamente apetrechado, com freios desenhados para facilitar a aplicação dos choques neurocraniais que o cavaleiro tem que aplicar à boca do cavalo, sob pena de esse não lhe obedecer. 

Não existem "mãos macias", afirma Alexander Nevzorov. Existem treinamentos para ensinar ao humano montado sobre o lombo do cavalo como fazer doer de modo lancinante os nervos que se espalham pela face e crânio, deixando o animal aturdido de dor. Esse é o segredo da equitação, confessa o treinador de cavalos da Nevzorov Haute École, o resto é apenas glamour construído para acobertar a realidade da dor e do sofrimento dos animais não humanos forçados a viverem sob os traseiros humanos.

Eles chamam a esse aparato de "estabilizador". Muito oportuna a palavra: estabilizar a dor.

É isso que o montado faz com os freios chiques enfiados na cavidade bucal do equino: ele dá choques e tem macetes para estabilizar a dor.

Quem sabe estabilizar bem a dor que inflige é um cavaleiro de "mãos macias".

Ai, bota o freio nele e usa o "estabilizador" para estabilizar uma vez bem estabilizada a dor na face e no crânio dele? Queria ver ele chamar isso de "macio", queria ver esse cavaleiro do mal beijar a mão em gratidão por tamanha "maciez" na aplicação da dor.

Céus! Vai faltar perdão!

quinta-feira, 8 de maio de 2014

OS BEBÊS DAS OUTRAS

Por Dr. phil. Sônia T. Felipe 
No sistema de criação de animais para consumo humano, a lista de crueldades praticadas contra os bebês animais não tem fim. Falo de bebês, fazendo a comparação entre o tempo natural da vida em cada espécie e o tempo que os humanos mantêm os animais confinados até abatê-los. Todos os animais consumidos na dieta humana, com exceção dos bovinos que são mortos no final da infância, são manejados e mortos em sua fase de bebê.
Mesmo os ativistas que estão diariamente envolvidos com a questão da defesa dos direitos animais acabam não percebendo que a dieta animalizada está assentada sobre a crueldade e tortura de bebês de outras espécies, seguindo o processo que já torturou e atormentou ou matou as mães desses bebês.
As mães humanas, cujo dia será comemorado no próximo domingo, não têm ideia da agonia de outras mães e do destino atroz ao qual os bebês delas são condenados para que os pratos dos bebês e crescidinhos humanos sejam enchidos com a matéria dessas carnes, leites e ovos.
De bebês bovinos e ovinos os chifres são extraídos sem anestesia. Os testículos de bebês ovinos, caprinos e suínos são extraídos sem anestesia. Mas toda gente que come carnes desses bebês sente arrepio ao pensar em seu cãozinho de estimação sendo castrado sem anestesia, ou sendo comido por povos que não os usam para estima e companhia.
O bico de galinhas bebês, destinadas à produção e extração de ovos, é queimado em lâmina de fogo, sem anestesia. A dor permanece ali por umas seis semanas. O bico das aves é um órgão que congrega as funções do olho, do tato e do olfato, sem as quais não haveria seleção de alimentos na vida natural.
Terminações nervosas se concentram na área do bico. Mas a ferida da lâmina de fogo não recebe nenhum tratamento analgésico. E é com a boca em chaga viva que esse bebê galinha terá que pegar o alimento que lhe será dado nas próximas semanas. Sem analgesia. Sem assepsia. No bruto mesmo. Dor infinita. A gente pode imaginar uma chapa em brasa cortando fora nossos lábios, sem anestesia pré-corte e analgesia pós-corte.
A cauda de ovinos bebês, usados para extração da lã, transporte de cargas, e mortos para extração de tudo que é matéria de seu corpo, das carnes às tripas, é cortada sem anestesia; e dos porcos bebês também, pois nos 140 dias do confinamento pré-morte eles comem a cauda uns dos outros, porque sua mente curiosa e inteligente não aguenta o terror e tormento da monotonia da vida aprisionada.
Na indústria de ovos, para a qual não interessa criar e sustentar machos, os bebês galináceos são triturados vivos ou sufocados em sacos com centenas deles, sem sedação prévia.
Os bebês recém-nascidos nos planteis de extração de leite de vaca são levados de caminhão, menos de 24 horas após terem saído do útero, para um cubículo escuro onde serão maltratados por quatro meses até que seu peso renda o custo disso e sua carne esteja tão branca e macia que mais pareça um queijo Camembert. Essa é a carne anêmica de vitela. Os que não têm tal destino são triturados pela indústria de alimentos para animais adquiridos ou adotados para estima, companhia ou guarda.
Os chifres são arrancados dos rinocerontes para fazer poções mágicas que, pretensamente, devolvem a virilidade a membros murchos, quando a causa da incapacidade masculina geralmente está na dieta animalizada que forma placas de gordura que entopem as artérias do sujeito.
As presas são arrancadas dos elefantes ainda vivos, pelos caçadores, que as vendem no mercado internacional do marfim. E os bebês dessas fêmeas, as educadoras naturais deles, ficam órfãos e piram completamente sem a presença de suas mães, tias e avós. Sim, uma manada de elefantes é constituída pelos bebês delas e pelas fêmeas mais velhas, que os criam e educam coletivamente. Os adolescentes machos se retiram da manada quando finaliza o processo educativo. Mas, se o processo não é finalizado, suas mentes ficam à deriva e eles podem se tornar destruidores da vida de outros animais, algo que não existe numa mente saudável de elefante. Arrancar as presas de uma mãe, avó ou tia é destruir o espírito dos bebês e jovens elefantes que não têm com quem aprender o que sua natureza ou éthos lhes destina a ser.
As aves são engordadas ainda bebês, com comida em excesso, em tempo recorde: chega a menos de 30 dias de vida, nos quais o corpo adquire o peso e volume de um adulto. Imagine um bebê humano de menos de um ano com uma massa corporal de 60 kg, resultado do manejo alimentar, probióticos e antibióticos. Esse é o frango, o peru do Natal, o chester etc.
Na coleta e transporte desses bebês, levados para a morte, o peso do corpo fratura seus ossos, e é assim que pelo menos um em cada três desses bebês deformados acaba pendurado no gancho do abatedouro, com os ossos já fraturados, de cabeça para baixo, quando levado para a lâmina de água eletrificada na qual sua cabeça é passada para que desacorde um segundo antes da lâmina de metal o degolar. Como você prefere o frango? Assim mesmo.
Com a idade equivalente a de um bebê humano de dois anos, nesse caso, 90 dias de vida, os gansos e patos são colocados nas gaiolas para dar início à ingestão forçada de calorias que levará seus fígados a inchar 10 vezes o tamanho natural e a chegar ao peso de 65% do total do corpo em 28 dias de empanturramento. Em seguida, são mortos para extração do órgão gordo e degenerado. Ele vira patê. Consumido ao redor do mundo como iguaria francesa.
A pasta do fígado de bebês gansos, deformado pela ingestão forçada de alimentos altamente caloréticos: milho e gordura de porco ou mesmo de outros gansos, como você prefere? Assim mesmo. Não tem alternativa ética para fugir desse patê de foie gras.
Eu poderia passar o resto do dia a citar as atrocidades da indústria de carnes, leite e ovos, contra os bebês de fêmeas de outras espécies. Mas não acusarei a indústria. Os que a acusam sucumbem à falsidade de propostas bem-estaristas. Não há bem-estar possível para nenhum desses bebês. Não há bem-estar possível para nenhuma de suas mães. A indústria cruel só existe porque há consumo frio, seco e indiferente ao tormento dos animais.
O mesmo acontece com a morte dos elefantes, cujas presas são arrancadas deles ainda vivos para serem esculpidas em joias, tronos, teclas de piano e estátuas consumidas ao redor do mundo. Se não houvesse consumo, não haveria essas mortes.
É preciso abolir o consumo. Dieta abolicionista. Fim de toda crueldade humana contra os animais. E para abolir o consumo, os bebês das outras fêmeas esperam que as fêmeas humanas se deem conta da crueldade presente nas matérias alimentares que elas ingerem e forçam seus próprios bebês a ingerirem.
Dieta abolicionista vegana integral. A libertação ética animal, sem especismo eletivo ou elitista. Paz no prato. Paz na mente. É no eixo mãe-bebê que cada uma de nós veio ao mundo e se fez mulher, ou se faz homem, como ocorre com os elefantes. Quem se esquece de sua igualdade com outras fêmeas e com outros bebês, esquece-se de sua condição animal humana.
Se, quando bebês, houvessem feito a nós o que fazemos aos bebês das outras, como julgaríamos isso, estando do outro lado das lâminas de fogo, cortantes? É assim que você quer ser servido?

perfil soniaSônia T. Felipe | felipe@cfh.ufsc.br
Sônia T. Felipe, doutora em Teoria Política e Filosofia Moral pela Universidade de Konstanz, Alemanha (1991), fundadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Violência (UFSC, 1993); voluntária do Centro de Direitos Humanos da Grande Florianópolis (1998-2001); pós-doutorado em Bioética - Ética Animal - Univ. de Lisboa (2001-2002). Autora dos livros, Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais(Boiteux, 2003); Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas (Edufsc, 2006);Galactolatria: mau deleite (Ecoânima, 2012); Passaporte para o Mundo dos Leites Veganos (Ecoânima, 2012); Colaboradora nas coletâneas, Direito à reprodução e à sexualidade: uma questão de ética e justiça (Lumen & Juris, 2010); Visão abolicionista: Ética e Direitos Animais (ANDA, 2010); A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos (Fórum, 2008); Instrumento animal (Canal 6, 2008); O utilitarismo em foco (Edufsc, 2008); Éticas e políticas ambientais (Lisboa, 2004); Tendências da ética contemporânea (Vozes, 2000).
Cofundadora da Sociedade Vegana (no Brasil); colunista da ANDA (Questão de Ética) www.anda.jor.br; publica no Olhar Animal (www.pensataanimal.net); Editou os volumes temáticos da RevistaETHIC@,www.cfh.ufsc.br/ethic@ (Special Issues) dedicados à ética animal, à ética ambiental, às éticas biocêntricas e à comunidade moral. Coordena o projeto: Ecoanimalismo feminista, contribuições para a superação da discriminação e violência (UFSC, 2008-2014). Foi professora, pesquisadora e orientadora do Programa Interdisciplinar de Doutorado em Ciências Humanas e do Curso de Pós-graduação em Filosofia (UFSC, 1979-2008). É terapeuta Ayurvédica, direcionando seus estudos para a dieta vegana. 

domingo, 27 de outubro de 2013

Crônica de Machado de Assis publicada na coluna "A Semana" do jornal "Gazeta de Notícias"

http://www.cronicas.uerj.br/home/cronicas/machado/rio_de_janeiro/ano1893/05mar1893.html


05 de março de 1893

Quando os jornais anunciaram para o dia 10 deste mês uma parede (greve) de açougueiros, a sensação que tive foi mui diversa da de todos os meus concidadãos. Vós ficastes aterrados; eu agradeci o acontecimento ao céu. Boa ocasião para converter esta cidade ao vegetarismo.

Não sei se sabem que eu era carnívoro por educação e vegetariano por princípio. Criaram-me a carne, mais carne, ainda carne, sempre carne. Quando cheguei ao uso da razão e organizei o meu código de princípios, incluí nele o vegetarismo; mas era tarde para a execução. Fiquei carnívoro. Era a sorte humana; foi a minha. Certo, a arte disfarça a hediondez da matéria. O cozinheiro corrige o talho. Pelo que respeita ao boi, a ausência do vulto inteiro faz esquecer que a gente come um pedaço de animal. Não importa, o homem é carnívoro.

Deus, ao contrário, é vegetariano. Para mim, a questão do paraíso terrestre explica-se clara e singelamente pelo vegetarismo. Deus criou o homem para os vegetais, e os vegetais para o homem; fez o paraíso cheio de amores e frutos, e pôs o homem nele. Comei de tudo, disse-lhe, menos do fruto desta árvore. Ora, essa chamada árvore era simplesmente carne, um pedaço de boi, talvez um boi inteiro. Se eu soubesse hebraico, explicaria isto muito melhor.

Vede o nobre cavalo! O paciente burro! O incomparável jumento! Vede o próprio boi! Contentam-se todos com a erva e o milho. A carne, tão saborosa à onça, — e ao gato, seu parente pobre, — não diz cousa nenhuma aos animais amigos do homem, salvo o cão, exceção misteriosa, que não chego a entender. Talvez, por mais amigo que todos, come-se o resto do primeiro almoço de Adão, de onde lhe veio igual castigo.

Enfim, chegou o dia 10 de março; quase todos os açougues amanheceram sem carne. Chamei a família; com um discurso mostrei-lhe que a superioridade do vegetal sobre o animal era tão grande, que devíamos aproveitar a ocasião e adotar o são e fecundo princípio vegetariano. Nada de ovos, nem leite, que fediam a carne. Ervas, ervas santas, puras, em que não há sangue, todas as variedades das plantas, que não berram nem esperneiam, quando lhes tiram a vida. Convenci a todos; não tivemos almoço nem jantar, mas dous banquetes. Nos outros dias a mesma cousa.

Não desmaies, retalhistas, nesta forte empresa. Dizia um grande filósofo que era preciso recomeçar o entendimento humano. Eu creio que o estômago também, porque não há bom raciocínio sem boa digestão, e não há boa digestão com a maldição da carne. Morre-se de porco. Quem já morreu de alface? Retalhistas, meus amigos, por amor daquele filósofo, por amor de mim, continuei a resistência. Os vegetarianos vos serão gratos. Tereis morte gloriosa e sepultura honrada, com ervas e arbustos. Não é preciso pedir, como o poeta, que vos plantem um salgueiro no cemitério; plantar é conosco; nós cercaremos as vossas campas de salgueiros tristes e saudosos. Que é nossa vida? Nada. A vossa morte, porém, será a grande reconstituição da humanidade. Que o Senhor vo-la dê suave e pronta.

Compreende-se que, ocupado com esta passagem de doutrina à prática, pouco haja atendido aos sucessos de outra espécie, que, aliás, são filhos da carne. Sim, o vegetarismo é pai dos simples. Os vegetarianos não se batem; têm horror ao sangue. Gostei, por exemplo, de saber que a multidão, na noite do desastre do Liceu de Artes e Ofícios, atirou-se ao interior do edifício para salvar o que pudesse; é ação própria da carne, que avigora o ânimo e a cega diante dos grandes perigos. Mas, quando li que, de envolta com ela, entraram alguns homens, não para despejar a casa, mas para despejar as algibeiras dos que despejavam a casa, reconheci também aí o sinal do carnívoro. Porque o vegetariano não cobiça as causas alheias; mal chega a amar as próprias. Reconstituindo segundo o plano divino, anterior à desobediência, ele torna às idéias simples e desambiciosas que o Criador incutiu no primeiro homem.

Se não pratica o furto, é claro que o vegetariano detesta a fraude e não conhece a vaidade. Daí um elogio a mim mesmo. Eu não me dou por apóstolo único desta grande doutrina. Creio até que os temos aqui, anteriores a mim, e, — singular aproximação! — no próprio conselho municipal. Só assim explico a nota jovial que entra em alguns debates sobre assuntos graves e gravíssimos.

Suponhamos a instrução pública. Aqui está um discurso, saído esta semana, mas proferido muito antes do dia 11 de março; discurso meditado, estudado, cheio de circunspeção (que o vegetariano não repele, ao contrário) e de muitas pontuações alegres, que são da essência da nossa doutrina. Tratava-se dos jardins da infância. O Sr. Capelli notava que tais e tantos são os dotes exigidos nas jardineiras, beleza, carinho, idade inferior a trinta anos, boa voz, canto, que dificilmente se poderão achar neste país moças em quantidade precisa.

Não conheço o Sr. Maia Lacerda, mas conheço o mundo e os seus sentimentos de justiça, para me não admirar do cordial não apoiado com que ele repeliu a asseveração do Sr. Capelli. Não contava com o orador, que aparou o golpe galhardamente: "Vou responder ao se não apoiado, disse ele. As que encontramos, remetendo-as para lá, receio, que, bonitas como soem ser as brasileiras, corram o risco de não voltar mais, e sejam apreendidas como belos espécimes do tipo americano”.

Outro ponto alegre do discurso é o que trata da necessidade de ensinar a língua italiana, fundando-se em que a colônia italiana aqui é numerosa e crescente, e espalha-se por todo o interior. Parece que a conclusão devia ser o contrário; não ensinar italiano ao povo, ante ensinar a nossa língua aos italianos. Mas, posto que isto não tenha nada com o vegetarismo, desde que faz com que o povo possa ouvir as óperas sem libreto na mão, é um progresso.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

NECESSIDADE DE EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL?


A experimentação animal é necessária para o bem-estar e a saúde humana? A resposta para essa pergunta é não. Para explicar de uma maneira bem simples, se assim o fosse, não seria necessária a existência de medicamentos de uso veterinário e medicamentos de uso humano, e poderíamos escolher entre nos operarmos em um médico ou um veterinário. Com efeito, não haveriam diferenças entre ambas as profissões. 
Qualquer pessoa que tenha estudado biologia aprende que organismos evoluem. Evoluir significa diferenciar, derivar. Ratos e camundongos são animais parecidos, mas não idênticos; eles derivaram de um mesmo ancestral comum, cada qual com suas características. Mas uma vez que as diferenças se acumularam, duas espécies surgiram, próximas, mas diferentes. Fato é que ambos os organismos reagem de maneiras diferentes a determinadas drogas, a determinados tratamentos. Não basta sabermos que ratos pesam mais do que camundongos para corrigirmos a dose de uma droga, pois não existe qualquer linearidade que confira cientificidade a essa extrapolação. As diferenças entre espécies são qualitativas e não quantitativas. 
Da mesma forma acontece com o rato em em relação ao hamsters, o hamster em relação ao porquinho-da-índia, esse em relação ao coelhos, os sapos, os pombos, cães, gatos, porcos, macacos e, é claro, o homem. Nenhum resultado que se obtenha desses animais poderá ser aplicado ao homem, porque ao contrário do que querem nos fazer acreditar, o rato não é um ser humano que pesa quinhentas vezes menos. Também, a diferença de 0,4% entre os genes do chimpanzé e do homem não tornam esse um modelo recomendável para a pesquisa de doenças humanas em 99,6% dos casos. 
Animais utilizados em experimentação, para serem considerados "bons", precisam pertencer a linhagens específicas. Eles precisam ser o mais homogêneos possível, com o mínimo de variação genética. Dessa forma, os resultados que se obtém desses experimentos são bem agrupados. Se ao invés de utilizarem animais de mesma linhagem fossem utilizados animais com diferentes procedências, ainda que pertencentes à mesma espécie, os resultados obtidos seriam inconclusivos, pois mesmo dentro de uma mesma espécie as diferenças tornam as reações aos tratamentos muito variadas. Daí pode-se entender a inconsistência da defesa da utilização de animais. 
A alegação mais comum para defender essas práticas é a de que seres humanos e animais domésticos são diretamente beneficiados por esses experimentos. Defende-se que, sem as pesquisas em animais, o ser humano não disporia de vacinas, transplantes, anestesias, nem das drogas que pretensamente tratam as diferentes doenças. Alarma-se para a idéia de que o fim da experimentação animal representaria o fim da humanidade. O declínio em nossa qualidade de vida, em nossa longevidade. Estas alegações são, para dizer o mínimo, enganosas. 
Embora todos esses tratamentos tenham sido exaustivamente testados e aprovados em animais, todos eles se mostraram falhos em produzir efeitos promissores em seres humanos, pelo menos em um primeiro momento. Muitos deles, apesar da segurança comprovada em animais, mostraram-se prejudiciais a seres humanos, produzindo severos efeitos colaterais. E se a intenção desses experimentos era impedir que seres humanos fossem utilizados como cobaia, isso não aconteceu. 
Se hoje transplantes de órgãos podem ser realizados com maior sucesso e existem vacinas um pouco mais seguras, foi porque ao longo dessas últimas décadas esses tratamentos foram testados em seres humanos, muitas vezes às custas de suas vidas e saúde. O pretenso sucesso desses tratamentos em tempos mais recentes, embora possa vir a ser contestado em outras instâncias, não pode ser atribuído ao uso de cobaias animais, mas sim ao uso de cobaias humanas. 
Seres humanos morreram nos primeiros transplantes de órgãos, seres humanos sofreram severos efeitos adversos de vacinas do passado, e com base nessas tentativas e erros, a atual medicina foi construída. Não com base na experimentação animal. 
Mas, se a experimentação animal não beneficia aos humanos, por que a maioria das pessoas acredita que ela é essencial? Podemos dizer que em certo sentido a ciência funciona como uma religião, onde a autoridade do alto clero jamais é contestada; assim, um doutor jamais pode ser questionado, mesmo que seja um mero reprodutor de uma idéia que ouviu. O próprio cientista muitas vezes não se questiona, o que parece um contra-senso, mas ele assume que determinados pressupostos são verdadeiros e os defende cegamente. 
Em outra abordagem, a ciência é mercantilista. Ela funciona por interesses comerciais, e a experimentação animal é interessante nesse aspecto. Além de todos os equipamentos e insumos necessários para a manutenção de animais de laboratório (gaiolas, equipamentos de contenção, rações, etc) a indústria lucra com a experimentação animal. 
Indústrias, como a farmacêutica, obtêm seus lucros da venda de seus produtos, no caso, medicamentos. Por isso, elas necessitam convencer a população de que seus produtos são vitais para sua qualidade de vida. Esforços são feitos para convencer as pessoas de que o aumento em nossa expectativa de vida tem relação direta com a enorme disponibilidade de drogas e tratamentos atuais. Poucos atribuem essas melhorias às nossas atuais condições de moradia, de higiene, abastecimento de água limpa, saneamento, segurança alimentar, etc, fatores estes que também passaram a preponderar nas últimas décadas. 
O papel da experimentação animal 
Nossa vida e bem-estar não dependem da experimentação animal. As experiências com animais apenas resguardam os interesses da indústria farmacêutica e associadas, possibilitando colocar no mercado drogas nem sempre seguras às pessoas. Experimentos em animais são conduzidos para amenizar as responsabilidades de laboratórios que lançam no mercado produtos que mais tarde poderão vir a prejudicar seres humanos. 
Por exemplo, se o xampu que não deveria arder nos olhos queimou os olhos de uma menina, isso é visto como uma fatalidade; testes realizados em olhos de coelhinhos mostram que o produto é seguro. E quem pode provar que o cigarro está associado a alguma doença, quando experimentos com animais mostram resultados inconclusivos? 
Após passarem por todos os testes 'necessários', em animais, e serem colocadas no mercado, muitas drogas precisam ser recolhidas. Isso porque seus efeitos adversos começam a se manifestar na população, muitas vezes de forma grave. Os testes em animais não podem prever esses efeitos, e isso é de conhecimento da indústria, mas há uma necessidade de que eles sejam conduzidos para prevenir a indústria de futuros processos. 
Se todos os testes considerados necessários pela legislação forem realizados em animais a indústria se isenta de sua responsabilidade. As pessoas que vierem a falecer em decorrência do uso de um medicamento tornam-se fatalidades. Números aceitáveis frente aos possíveis benefícios do medicamento. 
A ciência que utiliza animais de laboratório não é uma ciência boa, não apenas porque vitima animais inocentes, mas porque os resultados que produz prejudicam também ao ser humano. Esta metodologia conduz ao erro, ao atraso, a dados errôneos, à má-interpretação, à incoerência e ao desperdício de vidas. A abolição da vivissecção não é algo para ser pensado para o futuro, ela deveria ser algo do passado, é urgente. A utilização de animais em experimentos é um erro que se propagou na ciência e que ainda não foi suficientemente questionado. Cabe à sociedade como um todo se mobilizar no sentido de extingui-la.


perfil greif
Sérgio Greif -  sergio_greif@yahoo.com
Biólogo formado pela UNICAMP, mestre em Alimentos e Nutrição com tese em nutrição vegetariana pela mesma universidade, docente da MBA em Gestão Ambiental da Universidade de São Caetano do Sul, ativista pelos direitos animais, vegano desde 1998, consultor em diversas ações civis publicas e audiências públicas em defesa dos direitos animais. Co-autor do livro "A Verdadeira Face da Experimentação Animal: A sua saúde em perigo" e autor de "Alternativas ao Uso de Animais Vivos na Educação: pela ciência responsável", além de diversos artigos e ensaios referentes à nutrição vegetariana, ao modo de vida vegano, aos direitos ambientais, à bioética, à experimentação animal, aos métodos substitutivos ao uso de animais na pesquisa e na educação e aos impactos da pecuária ao meio ambiente, entre outros temas. Realiza palestras nesse mesmo tema. Membro fundador da Sociedade Vegana.

Olhar Animal - www.olharanimal.net